O VAR, o espetáculo e algumas das suas contradições.
Em junho de 2019 escrevi uma crítica ao árbitro de vídeo (O VAR é burro), mas um ano depois trago outras críticas, mais aprofundadas sobre o fenômeno que parece se renovar a cada semana com novas polêmicas e casos que provoca.
Devo também corrigir uma informação que trouxe no texto anterior onde disse que o VAR começou a ser usado na Austrália.
Existe uma discussão ao redor da sua estreia mas no mínimo, a Austrália foi um dos primeiros países, mas não sei ao certo qual foi a primeira competição a usar.
Entre 2012-13 na Eredivisie foram feitos os primeiros testes para o uso do árbitro de vídeo e em 2014 a IFAB (International Football Association Board) ampliou os testes.
O primeiro uso da ferramenta em uma partida foi em amistoso entre PSV e FC Eindhoven em julho de 2016.
Dois anos depois seria usada no maior evento de futebol espetáculo do mundo: a Copa do Mundo de futebol masculino.
Em “Sociedade do Espetáculo”, publicado em 1967 por Guy Debord, o espetáculo é definido como a relação social mediada pelas imagens; uma visão de mundo a partir de escolhas predeterminadas na produção das imagens, com sua forma e conteúdo justificando os seus fins.
O real é criado a partir do espetáculo e o espetáculo surge do real, formando uma relação recíproca, alienante e dona do monopólio da aparência.
Afinal, como discutir com o que está visível?
O futebol de espetáculo seria então aquele onde a relação é mais mediada pela manipulação das imagens, podendo variar por diferentes fatores.
Apelo comercial, marketing, “superestrelas”, perfil do público, enfim, qualquer fã de futebol percebe facilmente o nível de espetacularização de um jogo.
Todos estes meios, porém, dependem da capacidade de transmissão imagética, uma vez que a televisão – e outros meios de transmissão com imagens – é a principal forma de produção de imagens e a única capaz de fazê-lo ao vivo.
Com as dezenas de câmeras espalhadas nestes espetáculos, é construída uma narrativa do jogo assim como uma equipe de cinema pensa na narrativa de seu filme.
Os replays escolhidos, as câmeras usadas, os momentos transmitidos, os sons do ambiente e os comentários de especialistas criam um jogo único.
Por isso um mesmo lance pode parecer muito diferente pelo rádio ou pela TV, mas também com narrações diferentes pela TV, imagens diferentes ou até mesmo com a TV no mudo.
Algumas das melhores colunas de Nelson Rodrigues sobre o Fluminense foram escritas mesmo com sua incapacidade de assistir os jogos, dependendo apenas do rádio, comentários de testemunhas ou dos sentimentos que o jogo provocou nos torcedores.
O jogo de futebol não se trata um jogo objetivo, frio, capaz de ser completamente racionalizado.
Futebol é um jogo acima de tudo humano, por isso é quente e acontece no momento.
Noções acerca do impedimento, mão na bola e outros acontecimentos foi construída socialmente ao longo da história não apenas por o que é visto, mas também a partir de valores e sentimentos morais em conjunto com o que se vê no presente.
Daí vem a noção de “mesma linha” nos impedimentos muito difíceis, distância para ser considerado mão, intenção e por aí vai.
As contradições do VAR se acumulam: de acordo com as diversas entidades esportivas que o utilizam, ele deve ter máximo benefício e mínima interferência. Seu uso deve ser para lances óbvios, como explica o IFAB, sendo este tipo de lance aqueles onde não exista dúvida sobre a decisão.
Tal instrução tende a induzir o árbitro a mudar sua decisão quando é chamado para rever um lance que, mesmo não sendo claro – e neste caso a decisão de campo deveria prevalecer – os árbitros brasileiros mudam suas decisões aproximadamente 80% das vezes, como apurado em agosto de 2019. E dados levantados pelo SporTV em agosto apontam que o Brasileirão 2020 estava com 68% mais paradas para uso do VAR, além do aumento de mais de 20% das decisões após checagem.
Há até a instrução para os árbitros irem mais à tela para não dar a impressão de que o VAR é quem toma a decisão. O vídeo, que se propõe como ferramenta, vai além disso com sua característica fetichista.
O VAR provoca um desencantamento do jogo pela forma como é utilizado.
Depois da recente partida entre Santos e Flamengo pelo Brasileirão, onde teve mais de 10 minutos de paralisação por conta de revisões, Cuca reclamou falando “os caras estão chamando a arbitragem pra ficar discutindo por 5 minutos. Não tem como não ficar pilhado. Eu não entendo mais as regras do VAR […] Não está havendo uma correção. A interpretação de campo fugiu, hoje quem apita o jogo é o árbitro de vídeo”.
Concordando ou não com ele, fato é que o sexto princípio do VAR diz que “Não há restrição de tempo para o processo de revisão. A precisão é mais importante do que a velocidade”.
Neste jogo – e em vários outros que poderíamos pensar – não há uma “máxima interferência”?
E se pensarmos no jogo recente entre Tottenham e Newcastle na Inglaterra, a marcação de mão contra o Tottenham, em um lance que irritou a todos (exceção talvez para os fãs do Newcastle) houve ali algum benefício?
O quê exatamente é esse benefício, e para quem? Poderíamos os questionar também uma partida do Manchester United onde há pênalti marcado para time de Manchester após o término da partida.
Se até uma partida terminada pode ser revisitada, qual é o limite?
Em tempos em que é difícil terminar qualquer produção de entretenimento, fazendo séries se arrastarem e alguns filmes ressurgirem do baú, me pergunto se agora uma partida de futebol começa a ser esticado, apesar de certa forma isso já acontecer com programas pós-jogo, mas vamos voltar ao ponto.
Hudson Martins escreveu em 2019 críticas importantes acerca do VAR na sua coluna da Universidade do Futebol.
Tratando sobre as arbitrariedades nas produções de imagens, Hudson lembra que o processo de decisão sobre quais lances serão revistos e consequentemente, quais não serão, já carrega uma ideia que quantifica e atribui diferentes valores pré-determinados para cada tipo de lance de uma partida.
Tal decisão vai contra a própria natureza fluida e dinâmica do futebol, onde só é possível ter uma noção do valor de uma jogada após o fim do jogo.
A manipulação das imagens, ao escolher o quê será revisto e o quê se busca, isola um lance do jogo do seu todo, esvaziando-o de seus múltiplos significados para ser preenchido pelo o que é proposto na produção daquelas imagens.
Daí alguns lances banais se tornam erros absurdos ou é possível “achar” algo que se busca, bastando usar o ângulo certo e as ferramentas adequadas.
Vamos ao exemplo dado por Hudson: o primeiro gol da França na final da Copa 2018 contra a Croácia surge de uma falta marcada por uma simulação de Griezmann.
A falta, porém, como não é um “lance capital” não é revisto (ou é, mas nada pode ser feito). Mais tarde no jogo a França teria um pênalti a seu favor em lance parecido com o ocorrido entre Tottenham e Newcastle.
Complemento com a partida entre Fluminense e Bahia, no último dia 11 de outubro pelo Brasileirão 2020. Houveram dois lances para marcação de pênalti que o comentarista da transmissão acusava a penalidade para o Fluminense. São lances, no máximo, discutíveis.
O primeiro foi uma situação idêntica ao jogo citado do Tottenham e não foi marcado nada. No segundo lance, agora uma falta, foi marcado o pênalti após revisão do vídeo.
Vê aí o caráter fetichista do VAR, pois ele que só deveria intervir (pelo regulamento) em “lances óbvios” interviu e influenciou a decisão do árbitro no campo, o quê inclusive causou ira – ao meu ver justificada – do treinador do Bahia.
Um ano atrás a CBF celebrava que o percentual de acerto em lances capitais subiu de 68% sem o VAR para 92% com o VAR. De acordo com a CBF, o Brasil seria em 2019 o país com mais jogos com uso do VAR, superando 420 partidas.
Apesar dos números aparentemente positivos, as polêmicas se acumulam junto das páginas sobre interpretação do seu uso. É uma batalha sem fim entre uma tentativa de leitura cada vez mais objetiva do futebol, que é essencialmente subjetivo.
O VAR, porém, pode ajudar a perceber casos de racismo no jogo além de outros tipos de agressão. Mas hoje, com a possibilidade de tudo enxergar, o caminho escolhido nos torna reféns das imagens, incapazes de superar o controle da visão sobre os outros sentidos. A capacidade humana de interpretar o jogo foi deixada de lado em nome de algumas porcentagens a mais de acerto – mesmo que ainda duvidosos.
Existem lances que sempre provocarão discussão no futebol. Pensar que discussões públicas e “racionais” resolverão questões entre posições morais distintas e antagônicas é ilusão, mas a racionalização exagerada custa caro ao jogo, que deve seu encanto justamente na sua capacidade de provocar as mais diversas emoções intensas, seja em um gol no último lance ou até mesmo em decepções e injustiças, desde que faça “parte do jogo”.
Ao retirar essa margem deste “contrato social” do jogo e romper com o andamento da partida para lances que são imperceptíveis das arquibancadas mas verdadeiros escândalos milimétricos pela TV, o mínimo esperado é a perfeição de julgamento em jogadas óbvias, algo que não acontece.
O VAR é a perversidade do bem; atacando a cultura futebolística, cancelando celebrações de gols ou promovendo celebrações envergonhadas após minutos de revisão de um lance, criando o que chamo de pós-gol (quando se comemora a validação do gol e não o gol em si).
A perversidade está em nos fazer achar que isso é bom, nos tornar acríticos defensores que aceitam sob sorrisos e aplausos que o caminho é tornar futebol em uma espécie de vídeo-game ou alguma distopia digital pós-moderna.
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