Estados de humor de árbitros de futebol não-profissional

INTRODUÇÃO

Entre os diferentes personagens que compõe a prática esportiva, os árbitros são os responsáveis pelo cumprimento das regras e regulamentos das diferentes modalidades (REILLY; GREGSON, 2006). 

No caso do futebol, suas características fazem com que o trio de arbitragem seja responsável pelas decisões mais polêmicas de uma partida, pois uma única falha pode determinar o resultado do jogo. 

Assim, segundo Pereira, Santos e Cillo (2007), para ser árbitro não basta ter o conhecimento das regras e um bom preparo físico; é necessário preparo psicológico para que seja possível aplicar as regras em decisões importantes, dentro de instantes e sob a pressão de atletas, treinadores, torcedores e meios de comunicação.

A condição estressante em que o árbitro de futebol atua é bem descrita por Silva, Rodriguez-Añez e Frómeta (2002, p. 42):

"...O árbitro gasta boa parte de sua vida próximo da bola sem poder tocá-la, entre os jogadores suados, suando também, desgastando-se física e psicologicamente, correndo na chuva ou no sol, para, muitas vezes, no final de um trabalho prestado com satisfação, sair de campo aos gritos de "ladrão, ladrão"".

Pesquisas na área da Psicologia do Esporte têm buscado melhor compreender os aspectos psicológicos que envolvem a arbitragem esportiva, auxiliando árbitros a terem um melhor equilíbrio psicológico antes, durante e após as partidas. 

Entre os temas pesquisados referentes à Psicologia da Arbitragem, é possível destacar estudos relacionados à autoestima (NUNES; SHIGUNOV, 2002), características psicológicas (GONZÁLEZ-OYA, 2004), motivação (RODRIGUÉZ; ASCANIO, 2002), agressão (FOLKESSON et al., 2002), ansiedade (GARCÍA; BARA FILHO, 2004), estresse (PEREIRA; SANTOS; CILLO, 2007; SAMULSKI, 2009) e tomada de decisão (MACMAHON et al., 2007). Por outro lado, García (2003) destaca que a arbitragem é um dos temas menos abordados na Psicologia do Esporte, sendo um campo ainda carente de pesquisas. 

A mesma lacuna é percebida na arbitragem do futebol brasileiro por Moura, Souza e Roazzi (2009), para os quais o árbitro é sempre tema das discussões sobre a modalidade, mas pouca atenção recebe nas pesquisas da Psicologia do Esporte.

Um exemplo é a falta de estudos que abordem os estados de humor de árbitros, sejam brasileiros ou não. Werneck, Barra Filho e Ribeiro (2006) definem os estados de humor como indicativos de saúde mental, sendo compostos por aspectos positivos e negativos de um conjunto de sentimentos que variam em intensidade e duração. 

As pesquisas têm investigado os estados de humor dividindo-os em seis subconstrutos independentes: tensão, depressão, raiva, vigor, fadiga e confusão (LANE et al., 2005).

De modo geral, considera-se adequado o perfil de humor que apresenta elevado nível de vigor e baixos níveis de fadiga, tensão, depressão, confusão e raiva. No caso dos atletas, este perfil geralmente está associado ao melhor rendimento esportivo (LANE; TERRY, 2000) e à saúde mental (WERNECK; BARA FILHO; RIBEIRO, 2006). 

Porém, em se tratando dos árbitros, não existem descrições sobre seus estados de humor, seja em momentos competitivos ou não. 

Tendo em vista que os estados de humor podem estar relacionados à pré-disposição para lesão, concentração, tomada de decisão, ativação, irritabilidade e excesso de treinamento (BRANDT et al., 2011), os quais interferem diretamente no ofício da arbitragem, investigar o tema apresenta relevância tanto prática quanto científica. 

Tais pesquisas são favoráveis para embasar futuros cursos de formação de árbitros, reconhecendo as caraterísticas psicológicas desta população e as demandas das diferentes modalidades. 

Também somaria à literatura informações úteis para profissionais responsáveis por intervenções psicológicas direcionadas aos árbitros (RAMÍREZ et al., 2006).

Vale destacar que uma minoria dos árbitros chega a atuar no futebol profissional e que a maior parte inicia e encerra sua carreira em competições não-profissionais. 

Assim, longe dos holofotes da mídia existe uma grande parcela de árbitros que convive com situações que têm forte influência sobre seus estados de humor, as quais podem ou não se assemelhar ao futebol profissional. 

Neste contexto, a presente pesquisa objetivou avaliar os estados de humor de árbitros de futebol não profissional em momento pré-competitivo.

MÉTODO

Participantes

A amostra foi composta por 25 árbitros com média de idade de 33 anos, sendo 07 árbitros e 18 árbitros assistentes, todos voluntários do sexo masculino. 

Participaram árbitros filiados a uma liga municipal de futebol que atuaram em uma importante competição municipal no Sul do Brasil. 

As coletas foram realizadas nas duas primeiras fases e na final da competição, sendo que todos os árbitros foram convidados a participar e aproximadamente 70% aceitaram e preencheram devidamente os instrumentos.

O campeonato em questão recebe destaque na imprensa esportiva regional, inclusive com transmissão ao vivo em redes de rádio. Trata-se de uma competição adulta não-profissional no estilo "mata-mata", no qual existem jogos de ida e volta e cada equipe tem o mando de um dos dois jogos.

INSTRUMENTOS DA PESQUISA

Foram utilizados dois instrumentos: a) Questionário de Caracterização, e b) Escala de Humor de Brunel-BRUMS. 

O questionário de caracterização foi elaborado especificamente para o presente estudo, agrupando questões novas, relacionadas ao ofício de árbitro, com outras do questionário utilizado por Andrade (2001). 

Quanto ao ofício, questionou-se a sua função (árbitro ou árbitro assistente), se era filiado à federação estadual, se havia atuado em jogos profissionais, a quantidade máxima de jogos realizados por mês e seu tempo de experiência na arbitragem. 

A partir do questionário de Andrade (2001) questionou-se a autoavaliação da saúde, a qualidade do descanso, a qualidade do sono e a frequência de adoecimento, por meio de escalas de cinco níveis. 

As opções para autoavaliação da saúde, qualidade do descanso e qualidade do sono variavam entre 0 (péssimo(a)) e 4 (excelente). 

Quanto à frequência de adoecimento, as opções variavam entre 0 (não fico doente) e 4 (quase sempre fico doente).

DISCUSSÃO

O objetivo desta pesquisa foi avaliar os estados de humor de árbitros de futebol não-profissional em momento pré-competitivo. Grande parte do conhecimento sobre os estados de humor no esporte é proveniente de pesquisas com atletas, não sendo comum encontrar publicações envolvendo árbitros, sejam de futebol ou outras modalidades esportivas.

Árbitros que ficam doentes poucas vezes tiveram tensão mais elevada do que aqueles que não ficam doentes. 

A tensão se refere à alta tensão musculoesquelética, a qual pode ser observada por meio de manifestações psicomotoras como a agitação e inquietação, por exemplo (TERRY, 1995). 

Deste modo, a tensão elevada pode deixar o árbitro tenso ou trêmulo, interferindo em seu controle motor e prejudicando-o fisicamente durante a partida; inclusive aumentando a fadiga quando os níveis são excessivamente elevados (SCHINKA; VELICER; WEINER, 2003). 

Árbitros que não ficam doentes também apresentaram menor fadiga. 

A fadiga representa um estado de esgotamento, apatia e baixo nível de energia, sendo que seus sintomas podem provocar alterações na atenção, concentração e memória, além de distúrbios de humor e irritabilidade (LANE; TERRY, 2000), as quais seriam prejudiciais para um árbitro. 

É importante ressaltar que ambas as avaliações, relacionadas à saúde e aos estados de humor, são subjetivas e dependem de como o árbitro se percebia no momento pré-competitivo. 

Embora não seja possível confirmar uma relação direta entre essas variáveis, parece importante que o árbitro esteja preocupado com sua saúde física e mental; tendo consequentemente estados de humor mais positivos e melhor condição psicológica para o desempenho de seu ofício.

Embora existam relações entre os estados de humor e o sono (MAH et al., 2011), estudos indicam que algumas variáveis mediam essa relação, como sexo e idade, por exemplo (CAMPOS-MORALES et al., 2005; JEAN-LOUIS et al., 1998). 

Na presente pesquisa, os árbitros com pior qualidade de sono apresentaram maiores níveis de depressão. 

A depressão representa um estado depressivo, no qual a inadequação pessoal se faz presente, indicando um humor deprimido, e não depressão clínica (GALAMBOS et al., 2005). 

Níveis elevados de depressão podem representar um aspecto negativo, comprometendo a qualidade da arbitragem, pois representam a autoimagem negativa e autodesvalorização, além de tristeza e isolamento emocional (SCHINKA; VELICER; WEINER, 2003; BECK; CLARK, 1988; WATSON; CLARK; TELLEGEN, 1988). 

Desta forma, um árbitro pode ser influenciado pelas pressões externas com maior facilidade e não demonstrará convicção nas suas decisões, prejudicando a arbitragem e a sua relação com os atletas

Sugere-se, então, que árbitros invistam em estratégias que possam melhor a qualidade de seu sono e que os cursos de formação de árbitros ofereçam informações que possam contribuir nesse sentido.

De acordo com Rech, Daronco e Paim (2002), um bom árbitro deve influenciar no jogo por meio de sua simples presença, levando os atletas a evitar violações às regras. 

Para ter uma boa atuação, deve-se manter certas características em campo: consistência, comunicação, capacidade de decisão, equilíbrio, integridade, capacidade de julgamento, confiança, prazer e motivação. 

Deste modo, alterações nos fatores do humor que comprometem a atenção e a concentração podem afetar o desempenho do árbitro no exercício de sua função, pois durante a realização de uma partida o árbitro não pode ter qualquer tipo de descuido, seja em situações mais simples, como na reposição de bola por arremesso lateral, ou mais críticas, como na marcação de um tiro penal.

Os árbitros assistentes estiveram mais tensos e mais fadigados do que os árbitros principais. 

Embora tomem menos decisões, as intervenções dos árbitros assistentes geralmente têm interferência importante em uma partida, como a indicação de uma posição de impedimento, se a bola ultrapassou totalmente a linha de meta entre seus postes etc. 

Ser menos acionado e estar com tensão elevada pode prejudicar a concentração do árbitro assistente, aumentando as chances de uma tomada de decisão equivocada. 

Em relação à fadiga, o fato desta ser mais elevada nos árbitros assistentes pode demonstrar um preparo físico inferior, o que leva a uma percepção maior de fadiga. 

De acordo com Reilly e Gregson (2006), os árbitros assistentes percorrem em média 7.500 m por partida e chegam a atingir 65% de seu VO2max, enquanto o árbitro principal se desloca em média 10.000 m e atinge até 80% de seu VO2max

É possível que a maior exigência física de sua função faça com que o árbitro principal tenha melhor preparo físico, e mesmo com maior consumo energético durante a partida se sinta menos fadigado. 

Vale destacar ainda que as coletas foram realizadas antes das partidas, diminuindo a interferência de jogos precedentes em suas respostas.

Os árbitros que atuam ou já atuaram em jogos de futebol profissional apresentam maior vigor do que os que nunca tiveram essa oportunidade. 

O vigor se caracteriza por sentimentos de excitação, disposição, energia física, e está relacionado ao bom preparo físico e psicológico (TERRY, 1995). 

É importante levar em consideração que existem testes físicos para o ingresso nas federações de futebol, o que possibilita a participação em jogos profissionais. 

Trata-se de testes recomendados pela FIFA, nos quais Silva (2005) verificou que 37,1% dos árbitros da Federação Paranaense de Futebol não foram aprovados. 

Desta forma, as exigências para que um árbitro possa participar de uma partida profissional podem explicar o maior vigor destes em comparação aos que participam apenas de jogos não-profissionais.

A idade apresentou relação negativa com a tensão, a raiva e a confusão, e o tempo de experiência com a tensão. 

Árbitros mais jovens ou menos experientes podem se sentir mais ansiosos e com sentimentos de incerteza, além de apresentar maior irritabilidade (ROHLFS, 2006). 

Com o passar do tempo, a vivência de diferentes situações inerentes ao ofício da arbitragem faz com que o árbitro se adapte a diferentes situações. 

O estudo de Folkesson et al. (2002), por exemplo, demonstrou que árbitros de futebol mais jovens se mostraram mais propensos a serem influenciados e sofriam mais ameaças e agressões do que os de maior idade. 

Então, situações como estas podem interferir especialmente nos estados de humor dos árbitros menos experientes, que normalmente são os mais jovens.

É um agravante para o árbitro o fato de as pessoas não compreenderem a sua função dentro do futebol. 

Por este motivo, veem o mesmo como um personagem alvo de críticas e protestos, muitas vezes grosseiros, por parte de pessoas pouco informadas. 

Nesse meio conturbado de pressão, ansiedade, nervosismo e de estresse, são necessárias ações de apoio aos árbitros. 

Desta forma, a ciência pode dar importante contribuição, porém, ainda, são escassos os estudos nesta área (SILVA, 2005; GARCÍA, 2003), demonstrando a pouca atenção que é dada à população de árbitros em geral.

Rieira (apud PEREIRA; SANTOS; CILLO, 2007) afirma que para melhorar o contexto da arbitragem é necessária a dedicação. 

Além disso, ações devem estar voltadas para a melhor formação e para as competências pertinentes à arbitragem. 

A formação não deve se resumir ao estudo de regras, mas também a trabalhos psicológicos e conhecimentos de outros aspectos que envolvem esta área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora os estados de humor componham uma temática nova na área da Psicologia da Arbitragem, os resultados do presente estudo oferecem apoio empírico para a proposta de investigar esses construtos com árbitros de futebol. 

Reconhecendo os grupos que apresentam estados de humor mais negativos é possível planejar intervenções mais efetivas para a melhoria da saúde mental do árbitro, resultando em melhor qualidade de vida e rendimento em seu ofício.

Com base na análise e discussão dos resultados, pode-se afirmar que características pessoais, de saúde e do ofício da arbitragem estão associadas aos estados de humor de árbitros de futebol não-profissional. 

Mais especificamente, é possível destacar que árbitros com mais idade, com melhor saúde e qualidade de sono apresentam estados de humor mais positivos. 

Em relação ao ofício da arbitragem, apresentam melhor perfil de humor os que atuam como árbitros principais e aqueles que já participaram de jogos profissionais.

Finalizando, é importante destacar algumas limitações do presente estudo, com fim de direcionar futuras pesquisas que objetivem aprofundar o conhecimento sobre os estados de humor de árbitros de futebol. 

É interessante que sejam realizadas avaliações dos estados de humor em outros momentos pré e pós-competitivos, possibilitando um conhecimento mais amplo sobre a influência de um evento esportivo sobre os estados de humor dos árbitros. 

O fato de alguns dos árbitros terem participado da pesquisa em diferentes fases do campeonato também representa uma limitação, porém a avaliação em diferentes fases de uma competição constantemente levará à mesma situação. 

Também se destaca que os presentes resultados partem de uma delimitação específica e que pesquisas em outras realidades regionais e esportivas são incentivadas e necessárias.


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