RACISMO
O futebol é reconhecido, historicamente, como uma importante opção de lazer à população mundial, especialmente a brasileira.
Entretanto, o hoje reconhecido “esporte mais popular do Brasil”, capaz de unir pessoas de diversas etnias e classes sociais, um importante instrumento de inclusão social, não iniciou assim no país.
No seu início, em meados de 1894, quando chegou ao Brasil através dos estudantes de classe alta, que voltavam do Reino unido com bolas e chuteiras na bagagem, como foram os casos de Charles Miller e Oscar Cox, o futebol era elitista e praticado por clubes de engenheiros e técnicos ingleses, além de jovens da elite metropolitana que frequentavam estes espaços.
Os negros e demais cidadãos pobres brasileiros não eram aceitos nos grandes clubes.
Por Marcelo Medeiros Carvalho, do Yahoo Esportes
No final do século 19, o mundo vivia o auge do pensamento racial, segundo o qual a miscigenação era considerada uma das causas da miséria e do atraso brasileiro.
Era comum intelectuais da época emitirem opiniões como a do zoólogo suíço Louis Agassiz, que visitou o Brasil em 1865: “Que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças […] venha ao Brasil, pois não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo”. Pouca gente queria se misturar.
Uma longa e profunda herança colonialista e escravista pesava ainda nas nossas estruturas sociais, nas nossas instituições, e o futebol absorveu, diretamente e indiretamente, essas influências.
Por isso foi, durante os primeiros tempos, elitista, racista e excludente, reproduzindo constantes estruturais de nossa formação, como a concentração e a exclusão.
O racismo foi um dos traços mais pregnantes das conjunturas iniciais do futebol brasileiro. Um racismo acoplado a um elitismo social e cultural flagrantes na concentração de rendas, de poder e de oportunidades.
O futebol surgia como uma oportunidade de restabelecer a ordem social embaralhada pela abolição, em 1888, e pela proclamação da República, em 1889.
A formação dos times dentro dos clubes tinha forte orientação racial. Aqueles que não restringiam estatutariamente a brancos o acesso aos seus quadros eram seletivos por meio dos preços de mensalidade e título.
Se tudo isso falhasse, ainda havia a condição de que um novo associado deveria ser aceito por dois terços dos já existentes.
Aqui em 1912 na disputa da Liga Operária, Ponte Preta já tinha negros em sua diretoria e elenco desde a fundação em 1900 (Reprodução A Gazeta Esportiva)
Alguns clubes fugiram a essas regras. A Associação Atlética Ponte Preta foi a pioneira em ter cidadãos negros em seus quadros, desde a fundação do time em 11 de agosto de 1900. Entre os fundadores da Ponte Preta existiam negros e mulatos, como Benedito Aranha, que fez parte da primeira diretoria alvinegra. Já Miguel “Migué” do Carmo tornou-se jogador titular do primeiro elenco pontepretano, ainda no ano da fundação. O livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, aponta o The Bangu Athletic Club (posteriormente se chamaria Bangu Atlético Clube), como o primeiro a escalar um jogador negro, Francisco Carregal, em 1905. O feito fez com que, em 1907, a Liga Metropolitana de Football (equivalente a atual FERJ) publicasse uma nota proibindo o registro de “pessoas de cor” como atletas amadores de futebol. O Bangu, então optou por abandonar a Liga e não disputar o campeonato carioca.
Francisco Carregal, que utilizava um uniforme impecável para diminuir o preconceito por ser negro em um esporte da elite branca, foi o primeiro de muitos atletas negros no Bangu. Meses depois o time já contava com operários e negros juntamente com os ingleses. O time foi campeão carioca da segunda divisão em 1911 com quatro negros e seis operários no elenco.
Outra conquista do time da Zona Oeste da capital do Rio de Janeiro foi a quebra do preconceito entre os torcedores, já que na maioria dos campos os pobres assistiam às partidas em locais separados, que se chamaria geral, e não nas arquibancadas. O Bangu permitiu que todos acompanhassem juntos as partida, sem distinção de classe ou cor de pele.
Em dezembro de 1917, o Diário Oficial carioca divulgou a Lei do Amadorismo, onde dizia: “Não poderão ser registrados os que tirem os meios de subsistência de profissão braçal […] Aqueles que exerçam profissão humilhante que lhes permitam recebimento de gorjetas, os analfabetos e os que embora tendo profissão estejam, a juízo do Conselho Superior, abaixo do nível moral exigido”.
O Bangu foi muito importante na inclusão de negros no futebol brasileiro.
Entretanto, foi o Vasco da Gama, clube, que em 1904 já havia elegido um presidente mulato, Cândido José de Araújo, que entrou para a história ao adotar uma atitude que contribuiu decisivamente para a inclusão de atletas negros, mulatos e demais brasileiros que não pertenciam à elite. Após conquistar o campeonato carioca de 1923, ano de estreia na primeira divisão, com um plantel formado quase que inteiramente por jogadores negros, muitos deles “contratados” junto ao Bangu (à época, o futebol ainda era amador, e não havia contratações formais de atletas), o clube despertou a ira dos rivais.
No ano seguinte, Fluminense, Flamengo, Botafogo e outros times abandonaram a Liga e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). A Associação formou uma comissão de sindicância que apresentou as condições impostas aos chamados pequenos clubes. Estes teriam que apresentar condições materiais e técnicas e eliminar de seus quadros sociais jogadores considerados profissionais.
A acusação era que o São Cristóvão, clube suburbano repleto de negros, tinha jogadores, na prática, profissionais. A mesma acusação pesou sobre o Vasco da Gama de que incentivava o profissionalismo ao integrar jogadores de classes inferiores e pagar prêmio pelos resultados positivos, além de não ter estádio próprio. A entidade queria que o clube demitisse 12 atletas pobres, a maioria negros, o que foi recusado pelo, então presidente do clube, José Augusto Prestes, que no dia 7 de Abril de 1924 enviou a entidade um oficio declarando publicamente que o clube negava-se a participar da AMEA.
A primeira década do século XX terminaria ainda dividida entre o amadorismo e o profissionalismo, entre o caráter elitista e popular do futebol, entre a supremacia dos jogadores brancos e a introdução do atleta negro; inserção essa que mudaria drasticamente o cenário do esporte no Brasil.
Arthur Friedenreich enquanto jogava pelo Paulistano em 1929 (Acervo/Gazeta Press)
Apesar do racismo no futebol brasileiro, e na sociedade, no início do século XX, o primeiro grande ídolo da modalidade no país foi justamente um mulato. Filho de alemão com uma brasileira negra, Arthur Friedenreich foi o maior jogador brasileiro na época do futebol amador. Autor do gol que daria o primeiro título à Seleção Brasileira, o Sul-Americano de 1919. Contudo, o racismo arraigado na sociedade brasileira perpetrava que a presença de negros na Seleção Brasileira fosse vista com maus olhos.
Em 1921, por exemplo, o então presidente da república Epitácio Pessoa se reuniu com diretores da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) para pedir que apenas jogadores de pele mais clara e cabelos lisos fossem convocados. “Os senhores absolutos do esporte, num golpe reprovável, sem base, antiesportivo, excluem do quadro nacional […] os negros e mulatos”, publicou o jornal O País, em setembro de 1921. Apesar de Pessoa ter negado publicamente que tenha feito tal pedido, o corte de Luís Antônio da Guia, irmão de Domingos da Guia, foi a primeira prova da veracidade da história, confirmada com a equipe sem nenhum negro ou mulato que representou o Brasil – e que foi eliminada perdendo dois dos três jogos que disputou.
Brancos na sua essência, os clubes se organizavam em ligas, que eram desfeitas e reformatadas à medida que os negros ameaçavam tomar partes delas. Mas, o esporte, entretanto, havia trasbordado os muros dos clubes de ricos e brancos, equipes se formavam em todos os cantos e se agrupavam em campos de várzea. O nome “várzea”, por essa razão, acabou servindo para designar qualquer time e qualquer campo com características amadoras, em jogos sempre aos domingos.
Devido o estatuto das Ligas oficias vetar atletas amadores “de cor”, surgem as Ligas Negras, como a Liga Suburbana de Futebol, criada em 1907, assim como, a Liga Nacional de FootBall Porto Alegrense (pejorativamente conhecida como Liga da Canela Preta), no Rio Grande do Sul e a Liga Brasileira de Desportos Terrestres (pejorativamente chamada de Liga dos Pretinhos), na Bahia; entre outras tantas espalhadas pelo Brasil. A história nos mostra que as ligas não serviram apenas para competições em torno de uma bola de couro, mas eram também espaços voltados à sociabilidade e que serviram de resistência e luta no enfrentamento a discriminação racial.
Nos campos de várzea o jogador negro imprimiu um estilo próprio de magia e arte ao futebol brasileiro, diferente das formas arcaicas do jogo de bola. Os negros jogavam com mais ginga, com mais habilidade e reinventando os espaços, afinal o drible não é outra coisa que a criação de espaço, onde espaço não existe. Foi o que bastou para os clubes grandes realizarem um arrastão nos clubes das Ligas Negras. Contudo, a proibição de escalar jogadores negros criava um problema para técnicos e cartolas. Toda uma seleção de atletas com habilidade, porte físico e vontade de jogar bola ficava de fora dos gramados.
Não demorou muito para dirigentes perceberem a vantagem competitiva que teriam caso deixassem ideologias antiquadas de lado e aceitassem atletas negros. Mas as regras da época não permitiam que os jogadores fossem renumerados, e sem berço de ouro, os negros precisavam trabalhar não tinham tempo para gastar jogando futebol.
A solução que os dirigentes dos clubes encontraram foi empregar nos seus negócios negros que, coincidentemente, eram bons de bola. Quem jogava bem poderia ser elevado à categoria de funcionário-fantasma. A proliferação do chamado “falso amadorismo” e do pagamento de prêmios por vitória, o “bicho”, era proibido pelos regulamentos da época, mas a enorme popularização do futebol verificada nos anos 1920, tornando-se o esporte de todas as classes sociais, levou os clubes a ignorar ou driblar as normas.
A rivalidade entre os times os faria permeáveis a jogadores que, mesmo não sendo endinheirados ou brancos, pudessem ser garantia de vitória.
O sucesso do Vasco em 1923 impunha às demais equipes um pacote pronto: para vencer era preciso ter negros no time. Negros precisavam de remuneração para sobreviver e jogar. Remuneração que precisava se adequar ao amadorismo vigente na época.
O aparecimento do ‘operário-jogador’ proporcionou aos operários a possibilidade de o esporte ser uma segunda fonte de renda, além de uma relativa mobilidade social dentro da fábrica.
A prática começou então a ser vista como possibilidade de ascensão social. A tensão crescia com a difusão das gratificações do ‘profissionalismo marrom’.
Em 1932 um grupo de jogadores publicou no jornal Gazeta Esportiva, um manifesto onde pediam pelo direito de exercer sua profissão de jogador de futebol.
Ao clamor desses futebolistas foi se juntando também dirigentes de clubes, insatisfeitos com a situação de um “amadorismo marrom”, que não era nem amadorismo, nem profissionalismo. Para tais, a profissionalização poderia transformar o esporte num espetáculo e sobretudo assegurar a permanência dos craques nas equipes.
A adoção do profissionalismo no Brasil foi motivada por uma série de processos internos, mas ganhou força pela influência crescente do futebol estrangeiro. A Itália passou a importar jogadores sul-americanos com origens italianas, os oriundi. Já a Espanha sequer pedia uma relação familiar. A oferta financeira da Europa foi mais sentida na Argentina e no Uruguai, que com a perda massiva dos jogadores adotou a profissionalização entre os argentinos em 1931. Os países vizinhos passaram a atrair os jogadores brasileiros, em especial os negros, os mais talentosos. As ligas ainda propuseram um formato híbrido, que previa uma remuneração baixa e a manutenção do vínculo amador entre os clubes e jogadores.
O amadorismo profissional foi recusado e, em 1933, São Paulo e Santos fizeram o primeiro jogo profissional.
A profissionalização era numerosa entre os negros. Afinal, era entre eles que estavam os melhores jogadores. Com a profissionalização o futebol, muitas vezes, apresentou-se como um importante caminho de invenção de mercado para ascensão social dos negros. Primeiro grande ídolo do futebol profissional brasileiro, Leônidas da Silva levou o pagamento do bicho a uma outra dimensão. Leônidas é quem se pode chamar de primeiro garoto-propaganda do futebol brasileiro. Além do chocolate “Diamante Negro”, vendido até hoje, ganhou dinheiro anunciando diversos tipos de produto.
“Leonidas, sempre Leonidas!” foi a manchete da Gazeta Esportiva em 6 de setembro de 1943 (Gazeta Press)
Compreendendo que os desportos, sobretudo o futebol, exercem uma função social importante, Getúlio Vargas através da legislação social e trabalhista, em 1934, regulamenta o futebol como profissão. Os atletas agora eram reconhecidos como empregados e com isso tinham toda cobertura legal, sob a égide do recém-criado Ministério do Trabalho. Para além das paixões clubistas, a democratização da prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse ocupar uma posição central na construção da identidade nacional.
Concomitante a essa democratização o profissionalismo provocou um reflexo ainda mais profundo na sociedade. Mais do que a aproximação de classes, foi o responsável por integrar, em definitivo, aqueles que eram excluídos pela cor de sua pele.
E, a deixa para que os primeiros grandes ídolos surgissem e as massas passassem a acompanhar ainda mais de perto o futebol.
Hoje o futebol no país é um esporte tipicamente popular, jogado por pessoas de origens sociais distintas. Contudo, ele é percebido de maneiras também distintas.
Para um negro pobre, com poucas oportunidades, o futebol, muitas vezes, apresenta-se como um importante caminho de invenção de mercado para ascensão social.
O que pouco mudou ao longo dos anos foi o racismo. Incidentes de discriminação racial ainda são comuns nos estádios, assim como restrita presença de negros fora das quatro linhas, nos cargos de treinadores ou nas direções dos principais clubes do Brasil.
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