O (ab)uso do VAR e o subjetivismo nas decisões da arbitragem brasileira (José Luís Ferraro Luciano Feldens)

Cada vez mais, aqueles que não entendiam ou acreditavam, estão convencidos que o futebol além de ser político, é também política. Político porque lida com a produção de identidades, mais especificamente com os antagonismos que produzem cisões como o “nós” e “eles”. 

Nós torcedores de um clube, eles nossos adversários; nós simplesmente torcedores, eles dirigentes; nós dirigentes, eles cartolas ligados às (con)federações.


Ainda, o futebol é também política porque, todos os dias, dirigentes ligados às instituições futebolísticas tomam decisões que impactam em diferentes âmbitos o cotidiano dos clubes — de seus profissionais, sócios e torcedores.

No caso do (ab)uso do Video Assistant Referee — o árbitro de vídeo mais conhecido como VAR — observa-se a criação de uma condição hegemônica (e incontestável) na utilização dessa ferramenta em diferentes partidas dos campeonatos nacionais. 

Em assim sendo, é notório que o VAR integra a esfera do político no futebol. Logo, cabe àqueles que tomam decisões políticas em um nível clubístico (dirigentes e comissões técnicas) se insurgirem contra sua soberania em relação às decisões de campo que têm sido pouco assertivas.

O ponto é que, a pretexto de tornar o esporte mais objetivo em relação a lances de maior dificuldade para os árbitros de campo, o VAR ampliou o espectro do subjetivismo na tomada de decisões, elevando as hipóteses de arbítrio e, também, o espaço para manipulação de resultados. 

Essa fragilidade propiciada pela própria tecnologia tem sido responsável por erros inexplicáveis. Diversos clubes têm reclamado da falta de critérios na aplicação da ferramenta.

Deveríamos dedicar mais atenção a esse tema, sobretudo quando verificamos, na operacionalidade do VAR, uma capacidade real de alterar resultados desportivos e de criar resultados econômicos. 

Lembremos que as casas de apostas (bets), além de se tornarem relevantes patrocinadores dos clubes, premiam apostadores não apenas pelo resultado do jogo, mas até mesmo por lances havidos no intercurso de uma partida (marcação de um pênalti, por exemplo).

E os fatores que indicam o incremento do subjetivismo (arbítrio) na utilização do VAR são, essencialmente, de três ordens

Primeiro: o VAR incluiu novos atores com capacidade de interferência nas decisões de campo — as cabines são compostas pelo Árbitro Assistente de Vídeo, pelo Assistente de Árbitro Assistente de Vídeo e pelo Operador de Replays. 

Isso, por si só, não seria um problema. O que não está claro é sob quais critérios esse órgão colegiado toma a decisão de recomendar — ou de deixar de recomendar — ao árbitro de campo a revisão de sua decisão.

Todos lembramos do pênalti não marcado no jogo Corinthians x Grêmio, pelo Campeonato Brasileiro de 2023. A partida estava empatada em 4 a 4, quando Yuri Alberto ergue o braço e intercepta um perigoso cruzamento na área do Corinthians, aos 45 minutos do segundo tempo. Quando um dos operadores do VAR sugere que o jogador estava com o braço aberto, e não junto ao corpo, outro esbraveja que a intenção do jogador seria a de “de disputar a bola”. Sim, e daí?

Será que percebemos o subjetivismo se sobrepondo à evidência? Resultado disso: o VAR sequer recomenda ao árbitro de campo a revisão do lance — o potencial impacto dessa (in)decisão é conhecido: dois pontos a mais na tabela e o Grêmio teria sido o campeão brasileiro de 2023.

Em segundo lugar, há um problema capital que reside na função do dito Operador de Replays.

O momento em que a imagem é congelada em jogadas muito ajustadas é uma escolha. Uma escolha tomada a partir de uma diversidade de momentos e ângulos que perfazem a cena a ser analisada. Por exemplo, em um cruzamento que coloque o atacante em movimento na cara do gol, quantos quadros de imagens podem ser extraídos entre o momento em que o lançador parece tocar na bola e aquele em que a bola efetivamente está saindo de seu o pé, para fins de eventual caracterização de impedimento? São milissegundos determinantes para a decisão final, que em algumas circunstâncias, alinhadas à falta de nitidez da imagem congelada e da espessura das linhas projetadas pelo VAR, poderão ser ajustadas tanto para caracterizar quanto para descaracterizar a irregularidade. 

Relacionado a este ponto, temos um terceiro elemento gerador de incertezas: a escolha, pelos operadores do VAR, das imagens submetidas à análise do árbitro de campo. ]

Lembremo-nos, a respeito, do depoimento do presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, Wilson Seneme, à CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas, categórico em apontar que “um árbitro de vídeo não está obrigado a mostrar para o de campo todos os ângulos que estão na cabine, nem todos os ângulos que ele visualizou”. 

A afirmação espantou a todos. 

Ou seja, o manipulador do VAR teria o poder de “selecionar” as imagens e os ângulos sobre as quais o árbitro de campo tomaria sua decisão final.

Adicionalmente, ainda poderíamos apontar uma situação de viés cognitivo: o juiz de campo vê o lance do suposto pênalti e manda seguir o jogo por “contato normal”. Em seguida é chamado pela cabine do VAR para rever o lance. 

É exatamente aí que entra a dissonância cognitiva. Assim que o árbitro é chamado ele inevitavelmente pensa: “Será que errei em não marcar?”.

A partir daí, ele revê o lance e começa a buscar alguma coerência em relação às suas convicções para, talvez, validar a opinião do VAR, que supostamente é uma tecnologia que veio mitigar os erros da arbitragem. 

A questão problemática é que tal “coerência” na maioria das vezes implica rever a sua própria decisão/crença inicial. É aí que um suposto puxão que deveria fazer o jogador do Corinthians cair para trás (quando na verdade ele se projetou para frente) vira pênalti. O juiz toma sua decisão enviesado.

Enfim, se desejamos regularizar o (ab)uso do VAR no futebol do país, minimizando o poder de influenciadores externos, as condições de sua utilização deveriam estar condicionadas a algumas situações: 

(i) como prerrogativa do árbitro de campo que livremente decidiria rever o lance, ou 

(ii) como oportunidade dada aos técnicos das equipes para solicitarem um número limitado de pedidos de revisão por tempo de jogo.

Enquanto isso não for resolvido, tanto a soberana hegemonia do VAR seguirá cada vez mais forte nos certames futebolísticos do país, decidindo partidas em uma esfera político-subjetiva, quanto caberá aos dirigentes apenas a luta que, além de justa, é também política: a de promover uma ruptura em relação aos que insistem em interferir no resultado das partidas extracampo, aumentando a desconfiança e o descontentamento de todos em relação àqueles que dirigem o futebol no país, mas também em relação ao próprio futebol brasileiro que, na era do VAR, está deixando de ser uma paixão para reafirmar-se como uma decepção nacional — e cujos efeitos jurídicos e econômicos decorrentes de sua má aplicação já não podemos desconhecer.

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