Uma breve história dos árbitros

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Ken Aston, o inventor do visual dos homens de preto (entre outras coisas).
Dos homens de confiança dos clubes aos homens de preto

Eles estão longe de serem os protagonistas do jogo. 

E quando são, normalmente é porque deu problema. Mas ainda assim merecem uma rápida passagem pela sua história, repleta de curiosidades. 

Aqui, vamos focar evolução histórica da própria figura do juiz e na evolução de uniformes e acessórios. 

No começo, o amigão da galera

No início do futebol no século XIX, eram apontados dois árbitros (no inglês, umpire),¹ um por cada clube, e que deviam resolver problemas quando requisitados pelos capitães dos times. A princípio, cada umpire devia atuar na metade do campo que a equipe que o convidara defendia.

1- Essa distinção é importante porque, embora umpire e referee tenham a mesma tradução no português, são termos diferentes no inglês.

 

Surge o árbitro central, mas sem moral

Em 1881, surge a figura do árbitro central (referee), uma pessoa neutra ao jogo, que deveria marcar o tempo e ser consultado apenas como voto de minerva em caso de disputa entre jogadores e dos árbitros convidados (umpires).

 Assumindo o comando

Em 1891, a posição de campo é invertida: entra o árbitro central (referee) no campo, com a premissa inédita de apitar o jogo à revelia dos jogadores, e os umpires são extintos, trocados pela figura dos fiscais de linha (linesmen), ou seja, os bandeirinhas. 

Esses, a princípio, continuam sendo convidados por cada um dos clubes. Só na temporada 1898-99 na Inglaterra que começaram a chamar bandeirinhas neutros para jogos importantes.

 Enfim virou um trio

Devido a óbvias polêmicas envolvendo o vínculo de bandeiras com os clubes, e com a criação do Sindicato dos Árbitros (Referee Union) em 1908, finalmente a Inglaterra adota o uso de três juízes na partida: um central e dois como bandeiras. E era exatamente isso, pois até 1996 não havia especialização em nenhuma função: o juiz de uma partida poderia ser o bandeira na próxima.

 A invenção da diagonal

No começo, o trio poderia se posicionar como bem entendesse, desde que apenas com o árbitro no campo. 

Era comum, por exemplo, que os bandeiras corressem a lateral inteira do campo. 

Com a adição do impedimento às atribuições dos bandeiras ainda na década de 1890 (sim, no começo era assunto para o árbitro), viram que os três poderiam adotar posicionamentos mais efetivos para o conjunto em campo, tanto para melhorar a marcação em si, quanto para poupar os juízes de corridas desnecessárias.

O desenvolvimento do posicionamento diagonal foi um empreendimento gradual e coletivo. 

Desde 1905, já havia publicações sugerindo o melhor posicionamento do trio de arbitragem em campo. 

Mas foi só na década de 1930 que ele se popularizaria, com Sir Stanley Rous (que viria a se tornar presidente da Fifa, mas então era um árbitro inglês) advogando pela adoção da prática após ver algo similar na Bélgica. 

Após rejeição inicial, Rous apitou a final da Copa da Inglaterra usando a diagonal e foi muito elogiado. No ano seguinte, assumiu o comando da arbitragem na Inglaterra. Em 1948, outros países passaram a adotar a prática.

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A famosa diagonal entre árbitro (R) e bandeiras (AR).

 Curiosidades da diagonal

É comum hoje vermos uma padronização na diagonal em que os bandeiras ficam próximos aos laterais esquerdos do ponto de vista da defesa. Mas nada impede que o contrário seja feito, tampouco que a diagonal ou os bandeiras sejam invertidos no intervalo. No site memorial de Ken Aston, a seção que explica sobre o funcionamento da diagonal até dá dicas de quando aplicar tais mudanças (ex.: deixar um bandeira iniciante próximo aos bancos no primeiro tempo para ele ganhar experiência; manter os bandeiras próximos de jogadores que causaram confusão no primeiro tempo; manter os bandeiras na melhor posição para não ser ofuscado pelo sol etc.).

A troca de diagonal no intervalo era até pedida por alguns clubes no passado, como forma de preservar o desgaste do gramado onde o bandeira atuava. Dá mesma forma, era comum (mas não regra) manter o bandeira número um, o mais experiente (e tradicionalmente o que recebia a bandeira vermelha), próximo ao banco de reservas para ter mais controle com as reclamações dos técnicos.

 Surge o quarto árbitro

Em 1966, o ex-árbitro e então dirigente de arbitragem Ken Aston introduziu na Inglaterra a figura do quarto árbitro. 

Além de atuar na parte burocrática da arbitragem e auxiliar no diálogo com os bancos de reservas, a figura também foi criada para assumir um posto caso alguém do trio titular se machucasse (até 1996, em geral quem assumia a arbitragem era o bandeira principal, conforme veremos a seguir). 

Embora amplamente usado, sua figura só entrou na regra do jogo oficialmente em 1991.

 

Quem foi Ken Aston?

Ken Aston foi um bom árbitro. Apitou final de Copa da Inglaterra, dois jogos de Copa do Mundo, vá lá, mas não tem o currículo dos mais impressionantes do mundo. Mesmo assim, ele foi um gênio por trás da arbitragem. Quando ainda apitava, introduziu o uniforme de árbitro como o conhecemos em 1946: esportivo, não mais um paletó, todo preto com golas brancas. Em 1947, introduziu as bandeiras amarelas para os assistentes (antes os times da casa entregavam bandeirolas nas suas cores), o que facilitava a sua visualização.

Já como dirigente, criou a figura do quarto árbitro em 1966, criou os cartões vermelho e amarelo usados pela primeira vez em 1970, advogou pela inclusão de uma pressão padrão das bolas na regra, criou as placas de substituição em 1974. Enfim, foi um mestre na arte de fazer uma comunicação clara entre árbitros, jogadores e o público.

 Árbitro é árbitro, bandeira é assistente

Em 1996, surge aquela que talvez foi a mudança mais importantes da segunda metade do século XX. Pela primeira vez, foi determinado que os juízes deveriam se especializar, criando os especialistas em ser árbitro e em ser bandeira. Ah, e para acompanhar a mudança, determinou-se que os bandeirinhas agora teriam o nome oficial de árbitro assistente. Assim, o quarto árbitro passa a ser o árbitro reserva, já que os bandeiras não são mais treinados na função.

 Testes com dois árbitros

Na década de 1990, a Fifa autorizou alguns testes com dois árbitros em campo, para ver se melhorava a arbitragem ao ter sempre um juiz mais próximo do lance. A experiência que começou em competições de base chegou aos profissionais no Campeonato Paulista em 2000 e 2001. A experiência, todavia, não teve sequência. No Brasil, garante-se que foi por questões políticas, mas ela também aconteceu em outras partes do mundo. Uma grande preocupação era diferença de critérios pelos dois árbitros para lances interpretativos. 

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Teste com dois árbitros na final do Paulistão de 2000.

E tome gente em campo

Bom, se o árbitro reserva não é especialista em bandeirar, o que acontece se um bandeirinha se machucar? Desde a Copa de 2006, a resposta é: tenha um assistente reserva. A definição do papel dele na regra atualmente é basicamente essa, assumir o posto do assistente caso ele se machuque e ele basicamente só é usado nessas competições da Fifa, onde já há uma equipe de arbitragem enorme reunida no país só para o evento.

E após testes feitos em vários campeonatos (inclusive no Brasil), em 2012 a Ifab aprovou a introdução da figura do árbitro assistente adicional, também de maneira opcional. São aqueles que ficam atrás da linha de fundo, próximo de cada um dos gols.

E tome gente fora de campo

Para finalizar, desde 2018 foi incluída a possibilidade do VAR nas regras do jogo. E na equipe do VAR há a função do próprio VAR (o árbitro assistente de vídeo, em geral um árbitro) e do AVAR (o assistente do árbitro assistente de vídeo, em geral um ou dois bandeiras). A nomenclatura é confusa, mas a regra é clara.

Ao todo, uma partida de futebol pode ter sete árbitros em campo: árbitro central, dois assistentes, árbitro reserva, assistente reserva e assistente adicional. 

Mas não precisa de tanto. 

Além deles, agora podem haver mais três pessoas no VAR. 

Se contar o operador do equipamento em si, pronto, temos uma equipe completa de 11 pessoas na arbitragem!¹ Mas não precisa ser assim.

1- Claro que aqui fizemos a possibilidade teórica máxima, mas dificilmente uma partida usa todas essas funções. 
Por exemplo, é normal que os assistentes adicionais atrás dos gols sejam retirados de campeonatos onde o VAR é incluído (afinal, seu trabalho pode ser executado pelo VAR).

 

Regra 6: a regra que não é regra

O futebol é conhecido por ter poucas regras: no total, são 17. É de surpreender, então, que exista uma que na verdade não é exatamente uma regra. A Regra 5 estabelece o papel do árbitro central, que é obrigatório em qualquer partida. Já a Regra 6 estabelece o papel dos outros árbitros no campo. O curioso é que logo no começo a Regra 6 já diz que os jogos e torneios “podem” usar as figuras ali descritas. Isso mesmo, nenhuma delas é obrigatória em uma partida oficial, nem mesmo os bandeiras. Essa é a mesma regra que regulamenta o VAR (que, por tabela, também não é necessário em uma partida oficial, claro).

É claro que dizer que “a Regra 6 não é regra” é só uma figura de linguagem para realçar que o uso do que está descrito nela não é obrigatório, mas a regra tem uma finalidade clara: ela serve para dar as opções possíveis e regular o que cada membro da arbitragem pode fazer. 

Por exemplo: se você quiser botar dois ou três árbitros dentro de campo ou deixar a marcação de impedimento a cargo do árbitro reserve ao invés dos assistentes, não pode, justamente porque a Regra 6 não lhe dá essas opções.

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